Afinal, de que é formado o homem? Corpo e alma? Corpo, alma e espírito? Um estudo dividido em dois posts analisará a história das teorias cristãs sobre a constituição do homem.
Não são poucas as teorias sobre a constituição do homem. A ciência, por
exemplo, afirma que o homem é pura matéria. Para os cientistas naturalistas,
não há nada imaterial no homem, apenas reações químicas que nos levam à ilusão
de termos uma alma ou algo do tipo. Já a maioria das correntes filosóficas e
teológicas aceitam a existência de uma parte imaterial do homem, comumente
chamada de alma. Alguns estudiosos da Bíblia chegam a ir mais além, afirmando
que o homem é constituído de três partes: corpo, alma e espírito.
A
intenção desta série de posts é analisar a cosmovisão bíblica sobre a
constituição humana. De maneira resumida, vamos examinar a teoria dicotômica
(corpo e alma) e tricotômica (corpo, alma e espírito) à luz de suas histórias e
da Bíblia. Por último, gostaria de dar minha opinião sobre a antropologia bíblica,
baseado principalmente nos escritos neotestamentários e, também, na visão
cristã da ressurreição do homem.
HISTÓRIA DO DUALISMO (ou dicotomia)
Esse assunto tem se
tornado muito popular nas igrejas hoje em dia. Mas, apesar do que muitos
afirmam, não está totalmente correto dizer “dualismo grego”. O dualismo, na
verdade, é platônico (Aristóteles, por exemplo, tinha uma visão antropológica
distinta).
Para Platão,
existiam dois mundos: o mundo sensível -
caracterizado como ilusório, temporal e mutável - e o mundo das ideias –
eterno, divino e imutável. O corpo, então, pertence ao mundo sensível, enquanto
a alma pertence ao mundo das ideias. Assim, há uma clara diferenciação de valor
entre os dois: a parte imaterial do homem (sua alma) é boa, incorruptível e
eterna, enquanto sua parte material é má, apenas um cárcere para a alma.
Essa filosofia
influenciou a heresia gnóstica do século II, contra a qual muitos dos Pais da
Igreja (geração de líderes que surgiu após os apóstolos) lutaram ferozmente.
Para os gnósticos, o corpo não podia ser parte da salvação. Por causa de todo
esse transfundo platônico do desprezo à matéria, eles logo passaram a afirmar
que Jesus não havia encarnado. Esse desprezo ao corpo também levava a duas
correntes distintas do gnosticismo: uns se entregavam a libertinagem, já que o
corpo era intrinsecamente mau, enquanto outros se dedicavam ao ascetismo
(disciplina do corpo) tentando liberar sua alma.
O DUALISMO E A IGREJA
Prontamente os pais
da Igreja começaram a atacar as ideias gnósticas e neoplatônicas. Justino
Mártir (100 a 165 d.C), por exemplo, disse o seguinte: “tão pouco se pode dizer que ela [a alma] seja imortal. [...] De fato, o
viver não é próprio dela, como o é de Deus.” Apesar disso, de alguma
maneira, os Pais foram gradativamente influenciados por uma tendência a definir
a matéria, ou seja, o corpo, como pecaminoso. Isso conduziu a um ascetismo
exagerado (como, por exemplo, Orígenes, que se castrou para seguir o celibato),
que teve seu auge no surgimento do monasticismo.
Agostinho (354 –
430 d.C.), o bispo de Hipona, aceitava a imortalidade da alma, sendo o corpo um
mero instrumento dela para relacionar-se com o mundo físico. O pensamento desse
teólogo africano foi de enorme influência para a teologia posterior. E assim, a
dicotomia se enraizou na teologia cristã.
A TRICOTOMIA
A tricotomia
(divisão do homem em corpo, alma e espírito) não teve tantos adeptos como a
ideia dicotômica. Essa visão surgiu com outro Pai da Igreja, Irineu. Para ele,
o crente recebia de Deus um espírito em sua conversão, enquanto o não crente
era somente alma e corpo.
Na verdade, muda a
nomenclatura da ideia platônica, mas o espírito na teologia tricotômica é muito
parecido com a ideia de alma proposta por Platão. O espírito do homem, dado por
Deus ao crente, é perfeito. Esse ente imaterial está em constante combate com o
corpo, sendo a alma uma entidade neutra, que pode pender para qualquer um dos
lados. Creio que a maioria de nós já ouviu em alguma igreja contemporânea
(especialmente se for neopentecostal): nós somos um espírito, temos uma alma e
habitamos um corpo.
Não há tanto para
dizer sobre a tricotomia, por ela ser, de certa forma, uma adaptação da
filosofia grega de Platão e outros para o cristianismo. Mas, rapidamente,
podemos ver sua falta de coerência bíblica. Por exemplo, em 2 Coríntios 7:1
diz: “Amados, visto que temos essas
promessas, purifiquemo-nos de tudo o que contamina o corpo e o espírito...”
. Há dois problemas aqui que confrontam a visão tricotômica de um espírito:
1) Se o espírito é um ente dado por Deus, ele
deve ser perfeito, porque Deus não faz algo imperfeito. O versículo afirma
claramente que há coisas que contaminam o espírito, o que quer dizer que ele
não é perfeito.
2) Se o espírito, como afirmam os
tricotomistas, é um ente separado, ele não pode ser imortal a menos que seja
perfeito, porque “o salário do pecado é a morte”.