A VISÃO BÍBLICA

Analisando seriamente a Bíblia, chegamos à conclusão de que, tanto a dicotomia quando a tricotomia são prejudiciais, se baseadas em uma visão platônica e não judaico-cristã. Na verdade, o problema é muito maior do que somente o fato de termos uma alma ou um espírito. É a concepção errônea do homem que ambas nos dão. 

A Bíblia parece intercambiar muitos términos para falar das partes do homem, tanto na esfera material quanto imaterial. Por exemplo, o Cântico de Maria em Lucas 1:46-47. Ali, vemos um recurso clássico da poesia hebraica, chamado de paralelismo sinônimo. Consiste em repetir a mesma ideia em duas frases sinônimas. A primeira frase utiliza o término alma e a segunda, espírito. Para Maria, claramente não havia diferença entre os dois. 

Se vamos mais adiante podemos perceber que o intercâmbio de palavras não se resume somente a alma e espírito. Por exemplo, Mateus 22:37 nos diz que devemos amar ao Senhor com todo nosso coração (gr. kardia), alma (gr. psuche) e entendimento (gr. dianoia). Sendo assim, devemos dizer que o homem é composto de corpo, alma, espírito, coração e entendimento? A lista cresce quando encontramos nos escritos de Paulo um intercâmbio semelhante entre as palavras gregas sarx e sôma, que significam, respectivamente, carne e corpo. 

A que conclusão chegamos então? O homem tem duas, três ou várias partes? Na verdade, parece que os autores bíblicos utilizam cada um desses substantivos para falar de uma parte específica do homem, mas não em um sentido contrário as outras, como o fazia Platão. Cada parte do homem se refere a ele como um ser completo. Quando Paulo quer se referir às tendências pecaminosas do homem, ele poderá usar termos como carne ou corpo. Quando ele quer se referir às tendências do homem de relacionar-se com Deus, ele usará a palavra espírito ou alma. Isso não quer dizer que são dois entes separados dentro do homem, apenas uma figura literária para ajudar na compreensão. Muito provavelmente, Paulo as usa pelo fato de serem palavras correntes nos círculos filosóficos da época e seriam de fácil compreensão para os leitores. 

De acordo com tudo isso, podemos chegar à conclusão de que não há uma só palavra que defina o aspecto interior ou exterior do homem. A palavra traduzida em português como alma (psuche) sempre se refere ao ser humano como inteiro, a sua vida, e não como uma parte imaterial vivendo dentro de um corpo. Conforme Leonardo Boff, “o semita não conhece uma alma sem seu corpo, e também não possui palavra correspondente para isso”. O único lugar onde podemos encontrar uma visão platônica da alma se encontra no apócrifo “Sabedoria de Salomão”, provavelmente escrito ao fim do século I por um judeu grego, mas em nenhum lugar da Bíblia. 

A RESSURREIÇÃO

O que me fez começar a pensar dessa maneira foi a perspectiva de ressurreição que têm os cristãos. Muitas igrejas contemporâneas imaginam que, depois de morrer, a alma do crente vai para o céu viver eternamente com Jesus. Mas isso não é o que a Bíblia diz. A Palavra de Deus afirma que Jesus venceu a morte e ressuscitou em um corpo físico, material. Na verdade, ir ao céu como uma alma ou um espírito desencarnado não seria uma vitória sobre a morte, seria uma mera consequência. A Bíblia, porém, nos diz que nós ressuscitaremos fisicamente. Essa foi a vitória de Jesus! Não haveria existência pós-morte se Jesus não morresse e ressuscitasse por nós, porque não existe tal coisa como uma alma humana desencarnada. 

Surge então outro problema. O que ocorre imediatamente depois da morte? Muitos afirmam que a alma volta para Deus, enquanto esperamos a reencarnação nos nossos corpos. A Bíblia não diz isso. Alguns versículos dizem que o espírito volta a Deus, ou, como no caso de Jesus e Estevão, que alguém entrega seu espírito e morre. Mas não seria isso algo como um eufemismo, uma figura de linguagem? É muito provável quando pensamos que a palavra grega e hebraica para espírito pode significar também respiração, fôlego. 

A Bíblia não é clara no que diz respeito aos momentos do intervalo post mortem. Paulo, em 1 Tessalonicenses e João, em Apocalipse 14:13, afirmam que os crentes estariam “dormindo” nesse entretempo. Já a tradição judaica acreditava que Deus dava aos justos um corpo como de um anjo, enquanto aguardavam a ressurreição e a vinda do Reino de Deus à terra. 

A única coisa clara é que não viveremos como almas no céu. O Reino de Deus se estabelecerá nessa terra, conforme nos prometem os últimos capítulos do Apocalipse. Sendo assim, necessitaremos corpos físicos (ainda que não totalmente iguais aos que temos hoje, cf. 1 Coríntios 15) para viver e dominar neste mundo. A questão pós-morte não é relevante, dado que, se esse for um tempo de “descanso”, como diz o eufemismo bíblico, não sentiremos o tempo. 

O mais importante de tudo isso é perceber que não há imortalidade na alma. Não há imortalidade em nenhuma parte do homem, porque ele é um ser completo, único e inseparável. É composto sim de partes, materiais e imateriais, mas não independentes, assim como o braço sozinho não é um ser humano, e a perna sozinha não é um homem. A única maneira que o homem pode ser imortal é recebendo o poder da ressurreição por meio de Jesus Cristo, Aquele que venceu a morte.

CONCLUSÃO

Aceitar o dualismo platônico, seja de forma dicotômica ou tricotômica, tem sido extremamente prejudicial para o cristianismo. Passamos a desvalorizar nosso corpo e a pensar nos prazeres como algo sujo. A Bíblia nunca condenou o prazer, somente atribuiu limites para que ele fosse desfrutado da maneira correta. Também, com o dualismo, tendemos a avaliar todas as coisas como secular ou sagrado, e assim a igreja se afastou do mundo, o que impossibilitou a ela ser relevante em um mundo necessitado. 

Obviamente não devemos, com isso, subestimar o pecado. Somente devemos perceber que o pecado não é somente o que é carnal e nem tudo o que dá prazer para nossa carne é pecado. A lista das obras da carne de Gálatas 5 traz coisas como o ciúme e a ira, que claramente não são causadas por nossa matéria ou carne, mas por nossa parte imaterial, o que mais uma vez reforça a teoria apresentada acima. 

Que tudo isso nos ajude a buscar a santificação com a ajuda do Espírito Santo e aguardar a esperançada ressurreição com mais ânimo.

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